sábado, 22 de novembro de 2008

brutalismo serial



Colônia Selvagem Show Room
galeria polinesia, São Paulo, Brasil


Vazio colônia

A noção de organização do espaço sustentada pela idéia de vazio se opõe diametralmente à experiência arquitetônica e social brasileira. A forma como os elementos da nossa paisagem se articulam é caótica, barroca - feita de sobreposições e justaposições. Os relevos espaciais das cidades de nosso país são exuberantes, a cultura européia e, principalmente, a americana que se impõem, sofrem resistência direta a partir da organização pouco ortodoxa do aparato urbano e das relações sociais que dele derivam. Podemos perceber que por trás das camadas do tecido social e urbano – essa camada escorada de maneira frouxa nas tradições e heranças européias – surge uma outra organização: caótica, orgânica, anárquica; que independe do poder público enquanto mediador e em que, no aparente desacordo, encontra a negociação de suas articulações.

Passeio ao anel periférico

À medida que caminhamos para fora dos centros velhos, perdemos até mesmo esse verniz europeu mais denso, escondido pelo cartaz naif do churrasco grego com suco. Então o horizonte se desenha a partir de: apartamentos de “alto padrão”, em que sobre um pastiche de formas clássicas conseguimos revelar a inaptidão intelectual e estética da elite paulistana; em pontos localizados, prédios com mais de 50 anos, representantes da tentativa de um país digno que comeu poeira e se perdeu nos balanços da epopéia, que no meio da ordem da barbárie, parecem incoerentes e anacrônicos; percebemos depois, sempre em rumo à periferia, uma reinterpretação do bom gosto das elites ao sabor da classe média, os neoclássicos surgem em versões mais econômicas, a estética obedece à relação vertical de dominação social e cultural, surge o pastiche do pastiche – pastiche ao quadrado; continuando o passeio, é impossível não perceber também a convergência marcante de estilos que é a epítome de nossa arquitetura, gritante e pós-moderna: o clássico se mistura com o mediterrâneo, que confronta o colonial, que adorna o modernista que transpira e se rende a vidros fumês e portas barrocas talhadas em pau ferro; mais adiante, entendemos que onde hoje residem trezentas famílias sob arcos do triunfo, antes existia uma vila de sobrados, pequenas unidades moldadas a partir dos bairros operários ingleses. Só entendemos porque, subindo a rua de paralelepípedos, no quarteirão seguinte, uma fileira de seis casas remanescentes guarda, cada uma, por trás das grades estendidas em forma de D de suas garagens, um Honda Civic - prateado, lustrado, mimado, modelo Flex, adorado enquanto ícone máximo do sucesso de nossa civilização; seguimos.

Rumando pelas marginais observamos as ruínas da natureza tropical em toda sua exuberância: margeando o que antes era o Rio Tietê, ladeados por um mato pobre, perfilados e em tons pastéis, jazem doze torres modelo plano 100, aterradora supremacia de uma certa engenharia econômica sobre qualquer tentativa de arquitetura, falência de qualquer principio de organização do espaço urbano, onde oito mil famílias enfrentam congestionamentos dentro das garagens labirínticas dos edifícios e regozijam-se sobre as possibilidades da casa própria; percebemos então, aos poucos e pouco a pouco aos montes, a mais característica e popular forma de habitação Brasileira: a favela, o barraco, a quebrada. Ela que, dentro dessa gama limitada de opções, fornece a construção mais adaptada ao clima local, ela que, em sua coletividade, cria grandes paisagens que lembram Paul Klee e também Cézanne, que enquanto gigantesca senzala serve aos interesses da classe média e das elites, comporta a massa de miseráveis e carrega, inegavelmente, a mancha histórica das crueldades sociais dos últimos quinhentos anos; atravessamos um mar de tijolos marrons, vemos a mata atlântica e, de quando em quando, em um posto de gasolina, uma loja de conveniência evoca aquela América ideal corrompida - meio-oeste in Guararema; vem mato e mais mato e depois um novo mar de tijolos e tudo de novo.
Monstro, não me devora

Ora, esse não pode ser o espaço, e essas não podem ser as relações sociais representadas pela elegância minimal pretinho básico da arte contemporânea Brasileira. Essa arte contemporânea, monstro acéfalo, zumbi natimorto, vertebrado entre as contingências do mercado e do décor burguês, filho do imperialismo e da má formação intelectual, destituído de seu sentido cronológico, empregado enquanto gênero, denotativo do que é sexy, fashion e, quem diria, até style. Dado o caráter subjetivo de sua matéria prática, a arte contemporânea se reveste de couraças e mais couraças de simbolismos vazios. Um escândalo de metonímias e metáforas débeis.

Então chuta que é macumba.

A Arte Contemporânea Brasileira pode ser sensual, suada, exuberante, com cheiro de churrasco, cachaça e cachorro. Tem que recender os olores sinceros do Largo da Batata, o brilho pisca-pisca da Rua Aurora ou os acordes graves de um calypso abafado. Essa cidade é uma cultura - fungos, vírus e bactérias all over. Uma selva. Essa é nossa riqueza, essa é a matéria básica, o subdesenvolvimento enquanto ascensão. Uma gama de tonalidades que demandam atenção.

Sempre aparece um grafiteiro dizendo que a cidade é cinza. Que vai fazer um trampo loko e trazer cor, alegria e arte – um presente para os cidadãos. Em uma inversão dificilmente explicada por qualquer processo racional, o limite entre o público e o privado, entre o espaço coletivo e os desejos individuais é corrompido (esse, um procedimento bastante brasileiro, como no carnaval da Bahia, o uso da “corda” que separa pretos e pobres de ricos e brancos sobre o chão da rua; ou nos shows nas praias do Rio de Janeiro, com o espaço destinado aos “vips” e Globais). Esse cara já esteve em Bruxelas? Não? Eu também não. Mas deve ser cinza. Cinza e civilizado. Ele que guarde suas cores e seu formalismo primário pra próxima propaganda daquele carro bacana ou pra Bruxelas, porque aqui o pixo impera: honesto, original, ruidoso, não mercantil e bárbaro. O pixo não pede a complacência do público e do privado. Camadas e camadas; sujeira, pixo e tentativas de limpeza, formando uma textura densa. A favela e o pixo, nossa paisagem Paul Klee.

A antropofagia de Oswald de Andrade e as lições Tropicalistas adquirem no presente ora um caráter caricato e superficial, ora um lugar de esquecimento. O jovem artista brasileiro não conhece Mario de Andrade. Ele leu Macunaíma pra entrar na facu, mas não achou tesão. O jovem artista nunca ouviu Araçá Azul ou Domingo. Ele não conhece o Paulo Villaça, nem sabe que ele já foi um boçal. Esse jovem até curte um Metaesquema, mas não sabe quem é Kurt Schwitters. O parangolé, coitado, é o novo quesito alegoria nota dez. As tradições colidem com esse jovem da zona oeste, que desperta seu Ariano Suassuna adormecido e dança o Maracatu na Rua Fidalga como que às margens do Capibaribe. O folclore abastece identidades esquizóides e a carnavalização acaba no carnaval.

Anacronismos ou saudosismos à parte, houve um tempo em que se pensava um país. Quando pensamos a realidade e nela espelhamos nossa cultura, vislumbramos a verdade, nos colocamos no mundo de forma genuína. Mas o jovem artista aprende cedo o léxico capenga que importa: o do mercado.

“O Movimento é sexy”

Existe uma tradição ritualística e uma riqueza mitológica em nossa cultura que não podem ser deixadas de lado. A lição aprendida a partir da antropofagia e do tropicalismo é que é possível criar uma arte que seja verdadeira, global, poderosa, contemporânea, visionária, substancial, espiritual e transcendental, que não seja mero reflexo das propostas imperiais, produzida dentro da colônia, dentro da selva, a partir, sob e sobre o subdesenvolvimento. A tentação de ceder aos apelos do mercado e incorrer em suas estratégias broxas é grande. Os rituais brasileiros, e a herança resultante, têm duas características interessantes, que contrastam com a matéria dominante: são SENSUAIS, tem um embate gostoso entre Eros e Tanathos e, são NÃO TRIUNFALISTAS, e isso é muito importante. A tradição ocidental é triunfalista, a tradição católica também. Na colônia selvagem, a partir das tradições indígenas e africanas, uma polarização entre céu e inferno fica nebulosa. A importância da sensualidade está na fruição do que é erótico, das pulsões produtivas e libertárias. O sexy contrasta diretamente com o sensual. Quando Eros sucumbe ao mercado, ele entra nesse movimento sexy. Tim Maia disse que no Brasil puta goza e traficante é viciado. Sim, claro. Não temos essa propensão à produtividade lógica, ao profissionalismo patológico. A produtividade certamente é uma necessidade, não podemos mascarar incompetência com malemolência, ou falta de respeito com cordialidade. A cordialidade está no patamar mais alto da civilização, assim como a capacidade produtiva. O brazil sexy é justamente esse lugar onde as capacidades produtivas e habilidades construtivas não são admiráveis, onde a falsa afetuosidade mascara os abusos do cotidiano. Seja erótico, não seja sexy.

Sintagma camelô

O showroom. A galeria não é somente um espaço de idéias. Ela é um lugar de comércio, claro. Ainda assim, no show room tradicional, os elementos são expostos obedecendo à lógica do consumo, que pode sofrer certo aprofundamento científico – do ponto de vista econômico -, mas nunca dialético. Em geral, mostras coletivas são organizadas a partir de curadorias temáticas, privilegiando a metonímia. Na colônia selvagem os elementos estão pareados, sobrepostos, empilhados e até organizados, obedecendo somente à lógica individual de cada expositor, normalmente construída sobre a chave possibilidade versus necessidade. A resultante é a uma ordem idiossincrática, ou desordem. É o sintagma camelô, aparententemente metonímico, mas profundamente metafórico, porque exemplifica a reinterpretação dos sistemas do capitalismo sob uma ótica marginal. É a pinacoteca setecentista in Brás. Cada elemento não deve ser reduzido a sua singularidade, mas observado no conjunto caótico amplo.


O John Cage de Irará

A abordagem é gingada.

Alguns anos atrás Tom Zé foi ao programa do Jô Soares. O gordo tentou devorar com seus tentáculos o nosso John Cage de Irará, cumprindo aquela pauta engessada própria da televisão ruim. Tom Zé não se deixou levar pelos caminhos do humor sensacionalista desse David Letterman in churrascaria. Esquivou e respondeu o que queria, mergulhou o discurso em subjetividades e fez o papel do palhaço incoerente, que sob olhares mais atentos, delineava sua apresentação em cima da mais pura coerência. Se esquivou de uma postura sexy imposta e adotou uma outra, sensual, que pôde, por alguns minutos transformar genialmente a transmissão da globo em algo de onde fluía sumo.

Essa é a abordagem, esse é o Recôncavo Situacionista.


Considerações finais; vazios

O vazio ético e estético que compõe a paisagem institucional brasileira encontra nas Fundações um porto seguro onde as deformidades no espectro entre o público e o privado se camuflam sob o manto escuro das práticas corruptas - a marca de todas as relações no Brasil. Aqui as possibilidades de iniciativas comunitárias amplas são reprimidas pela ignorância. A classe média desconhece as obrigações e responsabilidades das elites, ignora o prazer da cultura e o acesso às artes. A elite não abre mão de seus privilégios centenários. Sua incapacidade em usar parte do lucro excessivo para o bem comum continua sendo um dos maiores entraves para a fruição dos processos civilizatórios. Acaba organizando fundações e instituições que dispõem de dinheiro público para sua falsa caridade - fazem cortesia com o chapéu alheio. E por fim, os pobres, que simplesmente recebem as migalhas e preferem participar de seus próprios rituais, independentemente das propostas institucionais públicas ou privadas.

Mergulhemos na Colônia Selvagem.
Sintamos seu sabor sincero.





Pedro Caetano
galeria polinesia, Outubro 2008.